sábado, 22 de maio de 2010

R24 Marcas

Demora mais do que pensamos... Por esses dias percebi de forma mais comovente mas ao mesmo tempo menos dolorosa que ainda vou levar um bom tempo para me recuperar da morte da minha mãe.

Parece-me impossível que esteja escrevendo no mesmo lugar onde ela viveu seus últimos momentos. Dói ainda repassar tudo isso na mente e eu nem mesmo quis isso neste tempo todo. Simplesmente os pensamentos vem, não há o que fazer.

Parece impossível...Escrevi coisa assim há muitos anos atrás. Pareceram-me impossíveis os acontecimentos de um dia dessa semana. Me lembro que um psicólogo estudou essas coincidências profundamente. Coincidências muitos especiais ligadas a emoções. Psicólogo é uma forma de dizer. Era mais que isso, era Carl Gustav Jung, no fundo um cientista.

Indo buscar um livro na biblioteca passei novamente na frente do cemitério. Procuro evitar esse caminho. Olho na direção onde estão meu pai, meu irmão e minha mãe e sinto uma dor que disfarço com o rosto impassível, mas por dentro desabo.

Vi o tempo nublado e lembrei de como meu irmão gostava de tempo assim, com uma garoa prestes a cair. Lembrei do desespero dele quando eu saía do seu quarto no hospital nas madrugadas em que estive do lado dele e o acalmava. Só ia tomar um pouco de ar, ver as estrelas e voltava. Depois o ajudava no que podia. Uma manhã ainda o amparei e vi em seu rosto a última lágrima que ele verteu. Ele queria viver, sabia que estava morrendo, mas queria viver. Foi tudo o que vi naquela lágrima.

Logo depois que ele morreu, depois de visitar o cemitério, eu ia passando neste mesmo caminho quando um cano rebentou e a água jorrou como se fosse uma fonte. Ali mesmo me lembrei da tristeza dele nos últimos dias por quase não poder beber água. Pelo lado místico das coisas, aquela pequena fonte na minha frente pareceu uma coisa do acaso, um pequeno signo, desses que nos transmitem a sensação de que com ele estava tudo bem, não havia mais sede nem dor. Talvez houvesse mesmo um mundo além desse, me peguei pensando, eu, um cético sobre essas coisas.

Diferente dele meu pai esperava a morte como uma libertação. Mesmo no hospital conversávamos, ele por vezes declamava versos sobre as ironias da vida, eu o fotografava, ele sabia que eram as últimas fotos mas sorria e conversava comigo, até a hora da visita terminar. Eu prometia voltar, saía com suas fotos e então me permitia ficar de olhos úmidos. Mesmo ali meu pai me concedia seus últimos sorrisos. Estava pronto para ir e queria me deixar uma imagem de alegria, de firmeza, de pai amigo em todas as horas, até nessas. E deixou. Numa noite pouco antes da sua morte assisti ao filme “Encontro Marcado” onde Anthony Hopkins interpreta um homem que é visitado pela Morte, que diz que veio buscá-lo, que ele tem poucas horas de vida e ele se diz pronto, apenas queria passar os últimos momentos perto da filha. Não pude deixar de ver uma certa semelhança em tudo isso. Um pequeno signo naquela época. Mesmo escrever enquanto ele estava inconsciente...Me parece impossível que esteja olhando para meu pai morrendo...E não consegui escrever mais.

Minha mãe, profundamente religiosa, sempre rezou por ele. Como mãe passou pela provação de estar com o filho quando ele morreu. No ano passado adoeceu e passou por outro sofrimento tão intenso que a impressão que me ficou é que a pessoa que eu era desapareceu. Ficou uma outra que eu não conhecia e vez por outra eu volto, até submergir novamente nessa dor. Lembro da minha mãe, com sua veneração pelo símbolo da cruz do rosário que tinha, com o qual orava todos os dias. Durante a doença, que foi um sofrimento sem tréguas, acreditava num milagre. É uma das coisas que mais doem em quem assiste a isso. A pessoa acredita que amanhã virá um milagre, mas ele não vem. Manhã após manhã ao despertar, a pessoa percebe que a dor está alí, o milagre não. Relembro minha última visita a ela no hospital, sua expressão de dor, os carinhos, o beijo em seu rosto e a promessa de voltar logo à tarde na próxima visita. E depois a notícia de que enfim seu sofrimento havia terminado.

Relembrando tudo isso fui descendo a rua e vi, caído no chão, um crucifixo cintilante. Até me admirei que estivesse sem nenhum arranhão, caído na rua, quando na minha frente um jovem chegou quase correndo e fez o sinal de graças aos céus, se abaixou, pegou a pequena cruz e me disse:

- Encontrei...Você não sabe a importância que isto tem para mim, graças a Deus achei de novo.

Ajeitou a pequena cruz numa correntinha e atravessou a rua feliz. Lembrei da minha mãe e seu rosário. Pensei se não era um signo novamente. A pequena cruz brilhante e perfeita. Então nessa outra vida que dizem existir não há para ela mais dor nem sofrimento. Apenas o conforto de uma vida além dessa, tão brilhante quanto aquela pequena cruz.

Seja como for, emocionado cheguei ao centro da cidade e para me esquecer de tudo decidi entrar numa livraria e ver alguns livros. Na estante de filmes, bem na minha frente estava o dvd do filme “Encontro Marcado” que só vi quase na noite em que meu pai morreu. Me lembrei do meu pai naquela mesma hora.

Sou cético, mas por vezes esses acontecimentos me surpreendem. Penso nesses signos que as pessoas que crêem numa outra vida falam. Emocionado sinto o peito doer. Fico a pensar se tenho muito tempo de vida ou pouco. Sabe-se lá. Ao mesmo tempo, com essas coisas acontecidas, pareceu-me que se ainda sinto dor, ao mesmo tempo a dor vem agora como uma pequena onda, não como aquela tempestade que me envolveu. Na perspectiva da morte me sinto estranhamente calmo, pensando que talvez ela aconteça logo. Pareço ouvir meu pai dizendo que estava pronto, sem medo de partir. Olho as estrelas lá fora e penso qual desses dias ou noites será a última coisa que verei.

Seja lá como for, me parece que estou pronto. Essa outra pessoa que me tornei só espera que seja rápido.

Não é pedir muito, se alguém estiver realmente sabendo do outro lado.