sexta-feira, 15 de outubro de 2010

R29 O anjo e o sol

Depois de todos os sentimentos...
Na última semana recebi um telefonema me avisando de que um primo meu havia morrido. Após uma longa enfermidade que lhe custou um sofrimento enorme, havia finalmente descansado. A família, que havia feito todo o possível por ele, tinha que confrontar essa perda e a dor.
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Já conhecendo essa dor que então eles sentiam pela primeira vez, fui até o velório. Uma das coisas que sempre fiz em velórios foi manter uma presença apagada, discreta. Afinal o que dizer para as pessoas que perderam um parente? A morte é tão absoluta, tão avassaladora que só nos restam frases quase balbuciantes para dizer, frente à dor e às lágrimas dos parentes.
Ao chegar encontrei sua esposa e seus filhos chorando em volta do caixão. Ao ver seu rosto dele agora em paz, tentei não me emocionar, mas logo vieram as lágrimas. Abracei todos e junto com eles chorei também. Ao mesmo tempo, em seu rosto vi que toda a dor que o marcara havia desaparecido. Exatamente como vi no rosto de minha mãe em seu enterro, o rosto contraído e carregado de dor dera lugar a um rosto plácido. A vida se fora, mas nenhuma dor mais existira no momento final. Esse é o rosto dos que morrem em paz, confortados pelo amor da família em volta.
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Sua esposa e seus filhos haviam dito a ele todas as palavras de amor, dado a ele todo amparo que uma pessoa assim precisa nos momentos da doença e nos momentos finais. Agora choravam a perda que tinham temido, mas eu sabia de uma coisa. Em seus corações, em seu íntimo existia ao mesmo tempo que a dor, a paz de quem havia cuidado e amparado o ser amado. O homem que fora esposo e pai havia tido todo o amor que precisara até o fim.
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Impossível não se emocionar com as lágrimas da esposa, com a dor do filho e com as palavras de despedida da filha cujas lágrimas molhavam seu rosto. Eu via ali uma família que velara por quem amara até o último momento. De forma surpreendente, quando vi, estava ajudando a confortar todos eles. As palavras, o amparo, a forma de dissipar aquela dor, tudo vinha de uma forma natural de dentro de mim. Quando entramos no cemitério, ví a estátua de um anjo, velho conhecido meu de tanto tempo. Ao vê-lo enquanto ajudava a carregar o caixão, pude compreender.
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Sou o último da minha família. Para meu pai, meu irmão e minha mãe pude dedicar essas palavras, esses momentos. Entendi porque então, ao mesmo tempo com lágrimas nos olhos, me portava daquela forma, confortando os que ali estavam pela primeira vez.
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Eu tinha antes dito as mesmas palavras, derramado as mesmas lágrimas, trazido os corpos para o descanso final, nada daquilo me era desconhecido. A mesma estátua que eu sempre vira ali, passando em sua frente indo para o túmulo, de novo estava ali sob aquele sol claro daquela manhã ao mesmo tempo tão triste e tão linda.
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Era triste porque era a perda de uma vida. Esposa e filhos tinham que suportar aquilo, aceitar o inevitável. E era linda porque eu via em suas lágrimas o amor que haviam dedicado a ele, a dor que sentiam. A homenagem final, as lágrimas, a tristeza profunda, desesperada, mas com a certeza de que haviam feito tudo o que era possível, até o último momento. E haviam dado todo o amor possível até o fim. Se a dor os atingia, eu sabia que sempre se lembrariam daquele momento emocionados e com lágrimas, mas nunca com algum fantasma em suas consciências, como o que persegue os que deixaram de dizer palavras de amor, como aqueles que deixaram sozinhos quem lhes estendeu a mão pedindo socorro.
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Eles se lembrariam daquela manhã com dor, mas tão iluminada quanto aquele anjo por tudo o que haviam feito de bom.
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No momento final coloquei sobre o caixão uma flor e ajudei a descê-lo. Abracei cada um deles e suas últimas lágrimas ainda caíam quando nos retiramos. Despedi-me de todos que se iam e enquanto os parentes deixavam o cemitério, peguei uma florzinha no pequeno jardim que ladeia os muros da entrada e voltei, passando na frente do anjo, para deixá-la no túmulo da minha família.
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O dia era claro, as lágrimas já tinham ido, deixei aquela florzinha ali, como uma lembrança e depois de meditar um pouco, me retirei. A manhã continuava linda, o sol de um brilho intenso. Sobre a dor e o amor o sol brilha assim.
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O que podemos fazer, pensei enquanto passava novamente na frente do anjo, é que por tudo o que façamos, ele venha a brilhar dentro de nós, mostrando apesar da dor, os sentimentos mais bonitos que tivemos um dia para quem esteve do nosso lado até o último momento, até a última lágrima.
Apesar das lágrimas, então teremos dentro de nós uma manhã brilhante para ver e não algo para temer.