sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

R32 O ressuscitado

De volta à vida...
Vendo agora o Príncipe Valente deitado na sala, com o corpo bem largado como se fosse um herói imbatível e invulnerável, me ponho a recordar da noite passada. Para melhor entendimento Príncipe Valente é o nome que por vezes dou ao meu cachorro, que já pela convivência nem posso chamar de meu ou dizer que sou dono, digo que é um grande amigo.
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Pois sempre apoquentado quando saio e querendo sair junto nem sempre posso deixar que ele caminhe junto comigo. Tem o péssimo hábito de correr atrás de algum outro canino que julga desafeto e nisso atravessa a pista onde os carros passam num velocidade considerável. Mas mesmo assim o Valente considera que a pista é dele e portanto ele tem a preferência. Já escapou de ser atropelado algumas vezes, até que deixando de confiar na sorte decidi confiar na coleira com a qual o seguro antes que invada a frente de algum carro.
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Pois nessa noite vendo seu olhar brilhante onde se lia nitidamente a pergunta "...Quando vamos sair...?" decidi levá-lo comigo. Só de pegar a coleira ele deu pulos de bater qualquer marca olímpica e deu latidos capazes de fazer qualquer cantor de ópera sentir-se com um rival a altura. Já com o Valente encoleirado, fui saindo com ele e oras, estava se armando um tempo de chuva, mas uma pequena volta não seria um grande risco de voltarmos encharcados.
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Fomos caminhando para o portão e aí presenciei a morte e ressurreição do meu amigo. Pouco antes de pegar a chave, com a luz que nos atingiu me pareceu que um flash fotográfico gigante havia sido disparado sobre nós dois. No décimo de segundo seguinte tive a impressão de que o canhão de um tanque de guerra havia sido disparado na nossa frente.
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Era um raio e dos grandes e mostrando um clarão nada amigável. Ao mesmo tempo em que me abaixei quase caindo para trás, assim que o susto passou e enquanto o estrondo ecoava pela cidade toda, pude ver meu amigo iluminado pela fraca luz do poste da rua, imóvel, de rabo empinado e orelhas levantadas. Chamei-o pelo nome e dessa vez ele não atendeu. Pensei se não teria sido fulminado por algum choque e toquei na sua cabeça, eu mesmo ainda trêmulo. Ele virou a cabeça para mim e em seus olhos havia uma tal expressão de perplexidade que creio que pude entender o que ele pensava. Em seu pensamento canino, com toda certeza já se dava por fulminado e morto pelo raio e olhava o mundo além-vida, para onde acreditava ter sido levado, talvez notando a semelhança do portão do céu canino com o portão da casa onde vivera.
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Ora, sentindo o toque na cabeça devia continuar vivo deve ter pensado, então ainda estava nesse mundo. Nem tive tempo de segurá-lo e correu sala a dentro e enfiou-se embaixo do seu abrigo anti-raios, a mesa da sala. Com a chuva começando a cair em gotas pesadas, voltei. Fechei a porta e o olhei, bem encolhido embaixo da mesa. Melhor assim, meu amigo estava vivíssimo.
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Nem mesmo o prato de ração o tirou debaixo da mesa enquanto continuavam os trovões e raios. Mas claro, depois que os céus ficaram calmos, ainda que de forma cautelosa ele saiu para espiar os arredores com ares de grande valentia.
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Continuava enfim, vivo e portentoso o Príncipe não tão Valente assim, mas não posso falar muito. Eu mesmo quando afaguei sua cabeça depois do estrondo tinha as mãos trêmulas. Para manter minha pose junto à do Príncipe, atribuí os tremores aos exercícios feitos antes da nossa saída. E terminamos nós dois com a nossa coragem intacta naquela noite de chuva.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

R31 A partida

Eu sabia que viria este dia...
Está próximo o dia em que as árvores da floresta que tem sido meu templo particular por esses anos serão cortadas. Mas não tenho porque me lamentar. Faz parte de um ciclo. Fosse eu o dono dessas terras e não seriam cortados esses eucaliptos que tantos sonhos abrigaram. Mais que isso momentos de reflexão, coisas da vida.
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Há alguns anos atrás voltava eu da cidade grande imerso numa situação de vida nada fácil. Cheguei de noite e não tinha visto ainda. De dia, mais um motivo para desanimar. A floresta que me trazia tanto alento se fora. Para onde olhasse eu via apenas árvores cortadas. Eu nem conseguia acreditar. Fotografei a floresta ou o que havia restado dela em preto e branco e guardo as fotos até hoje.
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Mas acompanhei seu crescimento, pude ver os pequenos brotos crescendo, desfrutei de sua nova sombra em dias ensolarados e voltei a sentir seu perfume em noites de verão e enquanto ela crescia passei na sua frente levando meu irmão e minha mãe para a última viagem de suas vidas. Ela abrigou minhas lágrimas e por esses tempos de renascer, sonhos lindos e momentos que não quero esquecer.
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Mas como disse, faz parte de um ciclo. Depois de alguns anos a árvores são cortadas, enquanto que os trabalhadores ao mesmo tempo em que cortam, já preparam o plantio de novas mudas. Sei então que vão renascer. Me pergunto se estarei aqui para ver.
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São coisas da vida. Espero que eu esteja aqui para ver mais momentos como esses. Só vou viver uma vez mas sei que a Floresta Branca vai viver para sempre, esteja eu onde estiver.