domingo, 22 de maio de 2011

D18 De tarde e de manhã

Mas não é possível...
Voltando ontem para casa já de tarde depois de algumas correrias, mal havia me sentado para tomar um bom café e folhear um livro quando começa a tocar de novo o alto-falante da igreja perto de casa. De novo. Há coisa de duas semanas que aguento, aliás, todos no quarteirão aguentam o que é um costume secular da igreja católica desde que inventaram o alto-falante: tocar a música da Ave Maria em tom de ópera, coisa que escuto desde que era criança, com um cantor do qual nunca soube nada a não ser que põem o coitado para cantar outra vez, enquanto vários coitados que católicos ou não nas vizinhanças tem que aguentar isso ano após ano. Isso todo brasileiro conhece ou melhor dizendo, aguenta.
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Depois de passada a cantoria, fui passando a noite sossegado enrolado nos cobertores com um frio de gelar as orelhas. Aconteceu que um filme interessante começou, tarde é claro e me deixei levar pelo enredo muito bom. Fui dormir bem tarde, mas sendo domingo, sem problemas.
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Lá pelas 8 da manhã de domingo, frio ainda, acordo com barulho de gente batendo palmas. Vou lá ver. Abro a porta e lá estão duas senhoras vestidas com o clássico figurino evangélico com livros nas mãos que só podem ser Bíblias, que me perguntam se podem me falar sobre a mensagem divina e a salvação da alma. São Testemunhas de Jeová, que mesmo com esse frio saem pregando. Tudo bem que preguem, mas não podiam deixar para bater palmas mais tarde? E com esse frio ainda? Mas não é possível. Me despeço com uma desculpa qualquer e já vou preparar o café. Mas que coisa, com esse frio, domingo bem cedo e já pregando a salvação por aí! Que situação.
Bem mais tarde vou ao mercado para comprar alguns pães. Na fila da padaria me divirto olhando o que chamo de "televisão de cachorro" que é o galeto onde os frangos assados ficam rodando e são escolhidos pelos fregueses. Sempre tem audiência cativa. Ao sair do mercado vejo as mesmas senhoras batendo palmas na porta de outra casa em frente. Haja fé para tanta pregação.
Voltando para casa ligo o computador e começo a ler as notícias. A mais interessante é que uma congregação americana na Califórnia, regida pelo pastor Harold Camping está numa situação constrangedora. O fim do mundo anunciado pelo seu líder para ontem às 8 horas da noite, não aconteceu. A seita alugou outdoors, colocou imensos anúncios conclamando todos a se arrependerem, alguns seguidores se separaram de suas famílias, outros abandonaram os empregos e esperaram o dia final, isto é, ontem, reunidos em orações fervorosas e nada aconteceu. Pelo mundo todo as pessoas continuaram indo ao mercado para entrar na fila da padaria e outras coisas.
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Agora vão perguntar ao pastor o que deu errado e vão saber de duas coisas, ou ele vai dizer que Deus decidiu dar uma nova chance a todos ou então que o mundo já acabou e estamos no mundo novo, afinal foi apenas um fim espiritual, os fiéis é que entenderam errado. Ou vão descobrir que ele está em estado de demência, como já aconteceu com as Testemunhas de Jeová, cuja seita previu o fim do mundo para 1914, depois para 1925, depois para 1975 e a partir daí ninguém mais da religião deles toca no assunto.
JustificarO certo é que enquanto houver alto-falantes nas torres das igrejas católicas para tocar a Ave Maria de tarde e manhãs de domingo bem frias para as Testemunhas de Jeová acordarem as pessoas bem cedo, é certo que o mundo não vai acabar. Que coisa.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

C03 A Síndrome da China

Já aconteceu de verdade antes e depois...
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Filme recomendado

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A Síndrome da China (The China Syndrome, EUA, 1979)
Na longa e inesquecível cronologia dos filmes que retratam certos acontecimentos reais dos nossos tempos, alguns se destacam não só pela marcante interpretação dos atores com o trabalho de roteiristas muito bons. Juntando tudo isso com uma direção competente, temos o que chamamos de clássicos do cinema.
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Apesar de uma produção até simples para os padrões do cinema americano, é assim que podemos descrever "Síndrome da China", um filme que retratou de forma vívida um drama real que já aconteceu bem antes que ele fosse produzido e inacreditavelmente aconteceu na época apenas 12 dias depois do lançamento do filme e no Japão acontece nos dias de hoje enquanto estas linhas são lidas. No tempo em que o leitor vê este texto, na agora antiga usina nuclear de Fukushima no Japão e mais novo jazigo nuclear do mundo, tudo o que o personagem principal deste filme mais temia acontece a cada minuto, com a massa de combustível nuclear aos poucos vazando para o mar.
Jack Lemmon, um dos artistas mais expressivos de Hollywood interpreta o engenheiro-chefe de operações de uma uma usina nuclear americana, que em determinado dia percebe apavorado que por um erro do painel de instrumentos quase haviam provocado a fusão do reator e pior ainda, percebera com isso um defeito na construção do sistema de resfriamento. Sem ele saber estavam vendo tudo os repórteres de uma emissora de televisão, com a jornalista interpretada por Jane Fonda junto com Michael Douglas como o cinegrafista, que estavam ali para uma reportagem sobre o dia a dia de uma usina e haviam chegado no exato momento do incidente.
Depois de alertar seus superiores e a empresa proprietária da usina sobre os problemas que havia percebido, Jack percebe por parte da empresa a atitude de minimizar o ocorrido e manter as ações da empresa sem problemas no mercado financeiro. Más notícias além disso teriam o efeito de provocar o adiamento da nova usina construída pela empresa e em fase de aprovação pelo governo americano. Pior ainda, ao analisar os dados de segurança entregues na aprovação da usina, ele percebe que os dados haviam sido falsificados.
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Correndo contra o tempo, Jack conta apenas com contatos com a repórter para tentar denunciar o que poderia acontecer e ao voltar para a usina encontra uma operação de teste em força máxima em andamento, o que poderia provocar exatamente o que ele temia, a fusão do núcleo radioativo. Sem alternativas ele invade a sala de controle armado, expulsa todos de lá e tomando o controle da usina, passa a exigir a presença da imprensa para denunciar tudo o que estava acontecendo.
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Fora da sala de controle, a única preocupação dos diretores da empresa é fazer o desligamento externo dos circuitos para neutralizar as ações do engenheiro. Com a entrada da repórter na sala para entrevistar Jack ao vivo, o maior temor dos diretores da empresa já acontecera. Era inevitável a paralisação da nova usina, o fechamento da que estava com problemas e acima de tudo a perda financeira. Em nenhum momento os diretores da empresa levavam em conta que estavam com um núcleo de combústivel nuclear com problemas, arriscando uma catástrofe de proporções colossais. Interessava-lhes apenas preservar os lucros da empresa e é claro, seus lucros pessoais. Uma catástrofe nuclear e milhares de vítimas estavam fora das considerações.
Parece loucura que diretores de uma empresa possam agir assim, com toda sua educação formal, mas foi exatamente o que aconteceu antes do filme. Em 1957 em Windscale na Inglaterra, uma usina para fins militares, somente a insistência de um engenheiro em reforçar os sistemas de isolamento evitou que uma parte do país ficasse inabitável. Um incêndio no núcleo de urânio provocou a desativação da usina. Tudo o que restou da usina permanece em constante monitoramento. Em Kyshtym na antiga União Soviética, também em 1957 a fusão do núcleo provocou centenas de mortes e a usina permanece como um jazigo nuclear.
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Apenas 12 dias depois do lançamento do filme, a usina nuclear de Three Mile Island sofreu um acidente com exposição do núcleo radioativo em quase tudo semelhante aos acontecimentos do filme. Em 1986 o mundo ficou estarrecido com o acidente de Chernobyl, que hoje é um gigantesco jazigo nuclear. Em 2011, depois de um tsunami que provocou milhares de mortos e a destruição das salas de controle da usina de Fukushima no Japão, o núcleo de combústivel nuclear entrou em fissão sem controle, provocando a explosão de um dos reatores que até agora permanecem com sua reação sem controle, com um providencial esquecimento da mídia. A atitude do grupo de dirigentes da empresa foi de minimizar custos e até mesmo racionar a comida dos técnicos que trabalham na contenção do desastre, enquanto faziam apressadas reuniões para tentar acalmar os ânimos no mercado de ações.
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Na época da construção da usina por uma empresa americana, um engenheiro demitiu-se do projeto denunciando o que ele considerava absurdas falhas de segurança no projeto, em especial a usina ser tão próxima do mar numa região sujeita a terremotos como o que aconteceu.

A atitude dos grandes empreiteiros e burocratas governamentais poderia ser apenas ficção mas não é. No mais recente caso de contaminação nuclear, uma catástrofe natural desencadeou outra que já estava engatilhada por tais atitudes, de prezar acima de tudo lucros corporativos e pessoais.
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Nos tensos momentos em que a repórter entrevista o engenheiro dentro da sala de controle, nas coisas que ele consegue dizer até o desfecho final, fica uma clara imagem de como deveriam ser operados esses sistemas, que ao invés disso são submetidos a um lógica de mercado absolutamente insana.