quinta-feira, 19 de agosto de 2010

L03 Salvos e desaparecidos

Milagre de aspirina...
Dia 19 de agosto de 2010. Já 10 hs. da manhã e estou tomando um café enquanto ouço a rádio Canção Nova com mais um pregador com a prédica do dia. O pregador de nome Daniel relata um milagre. Pela narrativa dele parece milagre. Conta que há algum tempo atrás foi levado por um médico até o leito de uma mulher muito doente. Com AIDS em estado terminal e coberta de feridas a pobre mulher agonizava. Fiquei imaginando a extrema-unção quando ele contou, em êxtase, que Jesus ordenou-lhe que dissesse para a pobre mulher para se levantar e andar, que ela estava curada, porque Jesus agora, naquele momento lhe dava essa graça. E a mulher se levantou e andou. E feita a cura, todos rezaram, se despediram e cada um foi para seu lado

Passados uns três meses o médico o avisou de que a mulher com AIDS agora estava curada, com a mais perfeita saúde, feliz e passeando por aí. A platéia de católicos exulta com o milagre. A pregação continua em tom crescente. O relógio marca 10 e 25 hs.

O pregador Daniel agora recebe ordens diretas de Deus para descer do palco e ir até uma mulher numa cadeira de rodas, que providencialmente estava bem na frente dele. Ordena a ela que se levante e ela, milagre, se levanta. Estava doente de osteoporose mas se levanta. Tudo é fotografado pelo que o pregador conta e a platéia dá pulos de alegria.
Existe no sentimento do ser humano a necessidade de ser amparado e curado, seja como for. Como não poderia deixar de ser, esse sentimento passou para as figuras relatadas como milagrosas na história das religiões. No religião cristã não poderia ser diferente e é, acima de tudo, um sentimento que todo ser humano tem. Não importa se a cura vem de um milagre ou de um bom tratamento médico.

Enquanto ouvia a mudança da programação para outro pregador, fui imaginando como são explorados esses pretensos milagres que fazem a multidão de fiéis atingir um estado de ânimo que alcança a histeria. Aí qualquer discernimento fica toldado. É um fenômeno que se repete em qualquer platéia, sejam fiéis católicos ou evangélicos.
Fica uma coisa interessante por perguntar, mas ninguém pergunta na hora porque estraga a alegria do milagre. O pregador Daniel foi capaz de curar uma mulher com AIDS e essa mulher que deveria estender sua graça a outras pessoas simplesmente desaparece. Deveria ter se tornado a maior pregadora do Jesus que a curou, uma verdadeira missionária da fé com seu exemplo e com sua história, arrebanhando mais fiéis para essa causa. Mas no entanto, na semelhança de uma pessoa que apenas melhorou de uma dor de cabeça tomando uma aspirina, apenas sai caminhando e passeando por aí. O médico que a tudo assistiu deveria reportar tal caso em congressos de medicina, pois estará alí com certeza a possibilidade de salvar milhares de vidas mundo afora. Mas não. O médico apenas fecha sua maleta e retira-se sem maiores comentários. O pregador Daniel apenas relata o milagre. Não sabemos quem foi curado, quem era o médico, nenhuma testemunha existe.

Depois "cura" a idosa com osteoporose, que é claro, também cai na obscuridade e como os outros curados perde-se como uma sombra no meio da multidão. Então nessas ocasiões os pregadores dão vazão à sua veia curadora. Milagres de cura de dor nas mãos ou de cura de insônia tornam a prédica edificante. Impressionantes milagres capazes de deixarem Jesus corado de vergonha. Curar dores nas mãos. Curar insônia. Pobre Jesus, ele só ressuscitou algumas pessoas. A continuarem essas curas, a fábrica de aspirinas vai fechar.

É isso que eu chamo de milagre de aspirina. Um "milagre" que os católicos aprenderam com os pretensos milagreiros evangélicos. Levanta-se uma pessoa que está numa cadeira de rodas, atacada por artrite, osteoporose ou coisa semelhante, tão capaz de caminhar como caminha no consultório do médico para exames. Capaz sim de caminhar por uns 10 minutos, quando depois é obrigada a se sentar, mas nos 10 minutos em que caminha na frente do pregador, padre ou pastor, a platéia explode em gritos e aleluias. E depois ninguém mais presta atenção na pobre velhinha outra vez na cadeira de rodas. Jamais vi pastor ou padre algum fazer caminhar quem tivesse perdido as pernas num acidente. Em todo caso, é interessante ouvir tais programas. Fim de noite. Enquanto escrevo essas linhas fico pensando se o pregador Daniel teria feito algum milagre para socorrer um conhecido padre da rádio Canção Nova. O padre Léo, um dos mais conhecidos pregadores católicos, que também sempre falava de curas, testemunhos e milagres, morreu de câncer. Para ele o milagre não chegou a tempo. Nem o milagreiro.

O que fica doloroso para as consciências é que nunca sabemos quem foi milagrosamente curado de uma doença incurável, quem é o paralítico que hoje está caminhando por aí, quem é o cego que voltou a ver. Os padres e pastores apenas dizem que estão por aí, felizes da vida. A única coisa que podemos saber e ver de verdade e sem dúvidas é onde fica o túmulo de quem esperou um milagre.

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