quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

D32 Cachorro inútil

E depois de tudo, ele fica só olhando...
Levantei hoje decidido a dar cabo do último toco de árvore que havia ficado no quintal. Eu já tinha arrancado seis outros tocos e paguei meus pecados com a força que tive que fazer. Com a chegada de mais chuvas o quintal virou um lamaçal. Então fui preparar mais ferramentas e esperei os dias chuvosos passarem.
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No quintal, o toco que havia sobrado, tal qual condenado no corredor da morte, aguardava seu destino. Mas corajoso, nem sequer lhe passou pela cabeça tentar uma fuga durante a noite. Encontrei-o de manhã no mesmo lugar, altivo e sereno, pronto para enfrentar a sentença de morte, tal qual os condenados dos contos de heroísmo.
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Então comecei a a cavar o fosso em volta com a picareta. Mas grosso como era, o toco não ia entregar a pele ou melhor a casca tão barato. Já cansado de travar a ponta da picareta entre as raízes para depois forçá-la para a frente arrebentando todas elas, fui executando a sentença de morte. Dei mais umas marretada para começar a soltar o toco da base e voltei a cavar de lado com a picareta com golpes de arrasar e o toco firme, sem pestanejar e nem gemer me fazia passar vergonha na frente do meu cachorro, que deitado perto dalí, se aquecia no sol da manhã bem folgado, me olhando intrigado, pensando com certeza em que tipo de coisa eu estava a derramar bagas de suor pela testa.
Mas se o toco estava condenado, não deixou também de arquitetar sua vingança. Depois de mais um golpe fundo, travei a ponta da picareta numa raiz das grandes. Com certeza essa era a última. Forcei o corpo para a frente com toda a força, ouvi a raiz estralando e aí o toco se vingou com um último suspiro. A raiz arrebentou de uma só vez. Com as mãos segurando firme o cabo da picareta, forçando a raiz com o peso do corpo bem inclinado e com os pés para trás, eu só poderia ir para um lugar, para o chão. Ainda levei uma perna para a frente para me apoiar, só para enroscar o pé numa raiz que havia ficado bem para fora da terra. E aí foi a vingança do toco. Antes de poder tirar as mãos do cabo da picareta e com o pé enroscado, fui de boca no chão, justo no cimentado do lado do toco. Meus lábios serviram de almofada para os meus dentes que ainda latejam.
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Enquanto isso, esse cachorro inútil ficava olhando tudo, talvez pensando que fosse uma espécie de jogo entre o toco e eu e pelo jeito, enquanto via eu me levantando com a boca cheia de areia e com um fiozinho de sangue começando a descer, ele deve ter pensado que o toco ganhou. E continuou feliz tomando sol enquanto fui para o banheiro olhar o estrago no espelho.
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Na medida em que olhava e sentia o dente latejando mas ainda no lugar, pelo menos e espero que continue assim, meu lábio já ia virando um beiço enorme, cortado e inchado. Que situação. Enquanto estava no banheiro, vi esse cachorro passando para deitar bem sossegado no tapete da sala. Que inútil.
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Voltei lá e aí o toco saiu fácil, foi só levantar com uma ponta de ferro que fiz e pronto, o último toco saiu do quintal. E enquanto isso sentia o gosto de sangue na boca e o agora beiço latejando. Lavei as ferramentas, tomei banho e olhei de novo o beiço enorme. Olhei bem os dentes da frente e me pareceu ver uma trinquinha pequena num deles. Tomara que continuem no lugar.
Assim que me vesti, ainda sentindo o gostinho de sangue na boca, afinal cortou por fora e por dentro, esse cachorro desclassificado aparece na minha frente abanando o rabo, com seu habitual jeito de dizer que é hora do almoço dele e ele quer ração.
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Que mais eu podia fazer a não ser servi-lo? Cachorro inútil. Podia ter avançado para cima do toco, ter-lhe dado umas dentadas, ter escavado valentemente em volta do toco me ajudando, mas que nada, ficou lá tomando sol e só me olhando caído de boca no chão.
E ainda por cima tenho que servir ração para ele. Eu já tenho dúvidas se sou dono desta casa ou só um mordomo aqui. Que situação. E toca a passar remédio no beiço.

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