sábado, 10 de março de 2012

L09 Pregador de rádio

Em todo caso, ele sempre tenta...
E a platéia de fiéis toca a acompanhar o pregador ardorosamente
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Há alguns dias atrás, numa noite dessas em que o sono demora a chegar enquanto o tédio ronda os pensamentos, liguei meu radinho na rádio de católicos carismáticos "Canção Nova". Nada por nada pensei que alguma pregação tipo Espírito Santo estaria sendo irradiada e isso seria interessante. Mas era uma pregação normal, de um pregador bem entusiasmado, não lembro o nome, falando em profusão de milagres. Em tom de pregador evangélico, já que católicos carismáticos numa pregação são indistinguiveis de pastores evangélicos, o pregador continuava falando que tantos milagres estavam acontecendo que fiquei imaginando que talvez estivesse pregando dentro de um hospital, curando a todos de uma só vez.
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Mas era a típica pregação em que o pregador fala de forma incessante que milagres estão acontecendo enquanto que a platéia de fiéis entoa cânticos e aleluias e recita os refrões supostamente vindos diretamente do Espírito Santo, que se traduzem num palavreado incompreensível, que eles dizem ser a língua do Espírito Santo, só entendida por ele, é claro.
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E em meio à sua pregação, com tal fervor que eu já imaginava o pregador prestes a decolar em voo direto para o Céu, eis que ele começa a recorrer os velhos estratagemas dos pregadores, sejam eles católicos ou evangélicos. Lógico, as duas religiões não falam isso que pega mal, mas seus pregadores nos dias de hoje tem estudos de psicologia de massas e pregam com um olho na Bíblia e com outro na reação dos seus fiéis. E usam e abusam de um recurso que primeiro os evangélicos emprestaram do espiritismo, no caso uma suposta clarividência e que os católicos carismáticos copiaram direitinho.
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Consiste no truque de primeiro deixar uma platéia animada, sugestionada, como uma torcida de um time de futebol e depois o pregador entra com sua suposta capacidade de saber o que acontece pelo mundo afora.
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E aí ele força as expressões do tipo "você que está com câncer, Deus está te curando agora", "você, que sofreu um infarto, o Espírito Santo está restabelecendo seu coração agora", "você que está sem conseguir andar, Jesus está te tocando agora" e por aí ele vai não só deixando a platéia mais sensibilizada, como ouvintes doentes e aflitos, que mesmo que não tenham as doenças que ele fala, já sentem que pelo menos Deus deve estar olhando para eles agora. E por aí todos ficam felizes. Já é uma grande coisa pelo menos.
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Mas o que se nota nessas pregações é que o pregador sempre fala em milagres bonitos, que tenham um certo charme, um razoável e bem acabado apelo na imaginação dos fiéis. Isso que também é ensinado quando começam a serem treinados para suas pregações. Os santos que ele invocar lá no palco, além de Deus, Jesus e o Espírito Santo, só podem e só devem tomar parte em milagres assim, de classe e elegantes e que tenham apelo até mesmo cinematográfico.
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Nada de milagres pelos quais milhares de fiéis esperam de forma verdadeira e ansiosa, mas que são, na interpretação dos professores de pregação para as massas, desprovidos de apelo visual, que são por assim dizer chulos, escatológicos mesmo.
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Ou como reagiriam os fiéis se o pregador em alto e bom som dissesse que "você que está com hemorróidas, Jesus está tocando em você agora"?. Pronto, com um milagre desses, qualquer imagem de uma intercessão milagrosa em tons grandiosos que os fiéis poderiam ter na pregação cai por terra alí mesmo. Isso se não começarem a dar risadas. Se bem que é provável que boa parte dos crentes esteja esperando por esse milagre mesmo. Mas não tem charme, é escatológico, portanto está banido da pregação.
Hemorróidas? Quantos fiéis realmente não esperam por esse milagre?
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Muitas outras situações que afligem o fiel que realmente espera por uma solução milagrosa, infelizmente para os que sofrem desses males, estão no índex de milagres banidos pelos bispos. Um fiel jamais vai ouvir o pregador dizer quase em extâse que "você, que sofre de diarréia crônica, o Espírito Santo está te curando agora". Que milagre mais constrangedor.
Diarréia? É a aflição de muitos fiéis, mas este milagre está banido
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E assim, mesmo com uma legião de fiéis penando com esses problemas e esperando mesmo por um milagre, o pregador passa ao largo desses casos e cita apenas os problemas de saúde que dariam até mesmo um filme no melhor estilo do famoso seriado "Plantão Médico" com seus médicos charmosos e competentes. Ou no mínimo com a genial irreverência do "Dr. House" que sempre salva seus pacientes. Deus, Jesus e o Espírito Santo podem participar apenas e tão somente de milagres dramáticos, como milagres cardiológicos ou neurológicos. Esses outros males constrangedores ficam para o médico do pronto-socorro ou para o farmacêutico que todos conhecem na cidade.
A imagem de milagres que o pregador cita é assim, com charme de cinema
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Estas divindades, razão suprema da pregação, ficam assim preservadas para milagres da cardiologia ou da neurologia, que são milagres mais nobres para a imaginação dos fiéis e mais motivadores. Já a especialidade de proctologia que leva a imaginação dos fiéis a visualizar cenas risíveis ou outras do mesmo naipe, ficam miseravelmente banidas da pregação dos milagres.
E no meio de todas essas pessoas, pode estar Cauã, contando o dinheiro do prêmio
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E aí o pregador recorre a outro truque para continuar sensibilizando seus ouvintes. De sua clarividência, aparece um tal de Cauã. O pregador que em sua clarividência foi capaz de citar vários "vocês" com as respectivas doenças, dessa vez se atém apenas a dizer que "que você, que se chama Cauã e está passando por uma provação". O sujeito, que nas palavras do pregador está passando por uma provação, não precisa ficar aflito. Deus está tocando nele agora mesmo.
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Sabe-se lá quantos Cauãs podem estar ouvindo o programa a estarem com algum problema. E sabe-se lá quantos Cauãs também podem estar ouvindo o programa no rádio do carro zero quilômetro que acabaram de ganhar num sorteio ou melhor ainda, de comprar depois de terem depositado o prêmio da megasena em suas contas. Em todo caso essa pregação sensibiliza os ouvintes.
A verdade é que sem dinheiro não tem milagre, até Jesus deixa a rádio fora do ar
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E algum tempo depois, toda feliz, uma das locutoras do rádio diz que onde tem uma rádio assim, onde você ouve a programação religiosa sem nenhum intervalo comercial? Os fiéis devem concordar. Mas talvez esquecidos que todo mês pagam nos bancos os boletos de contribuição para a "obra da fé", no caso, dinheiro, mesmo, sabe-se lá quantos milhares de reais no total que financiam desde o pagamento do porteiro até o pagamento da locutora toda feliz, porque se a fé move montanhas, infelizmente não move o pagamento do aluguel, água, luz, instalações e todo o pessoal que trabalha dia e noite e espera os salários no fim do mês. Só com a fé, tudo isso não se move nem um milímetro.
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Sem contar a contínua exortação para os fiéis darem ouro. Sim, locutores e pregadores a todo momento falam "daquele ouro que você tiver em casa e puder doar", peças de ouro, coisas do tipo um pequeno anel, uma pequena jóia que não é usada há anos, mas que juntas aos milhares e derretidas viram um belo tijolo de ouro que vai parar no mercado bancário que cuida de transformá-lo em dinheiro. Sem isso, até o Espírito Santo pára de cantar.

Relembrando o romance de Jorge Amado, é mesmo interessante a pregação da tenda dos milagres.
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Vellker
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