quarta-feira, 29 de setembro de 2010

L04 O castelo e a queda

Deve ser doloroso...
No aspecto da religião cada um tem sua posição. Alguns vivem como crentes fiéis, uma parte considerável vive em dúvida silenciosa e uma parte menor ainda vive descrente. Estou nessa minoria, a dos descrentes, mais comumente chamados de ateus. Mas nem por isso deixo de acompanhar as religiões. Vez ou outra entro numa igreja. Agrada-me ver em certos momentos a delicadeza da liturgia. Em algumas datas, vejo a procissão de fiéis passando contritos. Em outros dias, mais animado, entro em igrejas evangélicas para ver as pregações furiosas do pastor, ameaçando a todos com o inferno, que ele descreve em cores vivas, aos berros, enquanto que em certas igrejas, o pastor é mais calmo e fala em salvação. Mas no fundo essa fé me parece tão frágil quanto um castelo de cartas.

Acreditar num deus e rezar para ele faz parte do costume das coletividades humanas há milhares de anos, desde que o ser humano estruturou-se em sociedades. Para quem não tem essa crença, é um fenômeno interessante e que pode ser acompanhado com uma certa isenção. Usualmente, sempre que tomo um café, costumo escutar a rádio católica Canção Nova. Alguns momentos da pregação dos padres são francamente risíveis pelos absurdos proferidos em certos sermões. Em outros vê-se como a crença pode ser como uma faca de dois gumes. Se para o fiel é um caminho de consolação, pode ao mesmo tempo ser um caminho de desolação.
Foi o que pude acompanhar na noite de ontem, em um dos programas da noite em que o locutor, um padre chamado Paulinho recebia ligaçõe, para orar pedindo a intercessão de Jesus, Maria e demais santos em nome de quem ligasse para ele com algum problema de saúde ou coisa parecida. Sucediam-se as ligações com pedidos que iam desde pedidos de cura de uma artrite até um bom encaminhamento do pedido de emprego.

Ligou então uma mulher, que em poucas palavras explicou seu caso. Pedia para rezar junto com o padre para que a intercessão de uma divindade cristã a curasse das vertigens constantes que tem desde que sofreu um acidente há muitos anos. Com a voz embargada refez seu pedido e o padre disse a ela para repetir a oração junto com ele.

Aos poucos começou tudo a se embaralhar. Tentando acompanhar a reza do padre pelo rádio e pelo telefone ao mesmo tempo, a pobre mulher se perdia. Prestei atenção e lamentei o acontecido. Se ela tinha tanta fé a ponto de fazer a ligação, era perceptível a forma triste e inapelável com que o pretendido milagre já começava a dar errado só com isso. Mais que todos os ouvintes ela deve ter percebido isso.

Vendo o descompasso entre a reza dele e a da mulher, o padre pediu a ela para desligar o rádio. Ela pediu um instante e então, para completar a tristeza, a ligação caiu. Ficou o padre tentando comunicar-se com a devota, que em momento de extrema necessidade se via, por assim dizer, completamente abandonada pelas divindades que tanto venerava e a quem tinha vindo pedir a intercessão milagrosa. Se nem uma reza e nem uma ligação telefônica era possível fazer direito, o milagre de uma cura então, muito menos. Uma coisa de cortar o coração.

Fico pensando como deve ser a dor desses devotos e devotas quando as coisas saem errado. Em todo caso os padres e mesmo os devotos sempre tem uma explicação. Esse deus está sempre certo e mesmo que o que ele venha a fazer seja um horror, que seja mesmo a coisa mais dolorosa e a que o devoto considere a pior que poderia lhe acontecer, bem ao contrário de suas mais emocionadas orações, para isso os padres já tem a sentença dada: esse deus está certo e pronto. Ele sabe o que faz. Por pior que faça, é o melhor para quem foi na verdade uma vítima do seu ato e que é julgado, por mais horrível que seja, misericordioso. Na verdade dizem os padres, quem assim foi atingido, foi na verdade, agraciado. E recitam palavras da salvação e passam para a próxima ligação, como se nada tivesse acontecido.
Fiquei imaginando a dor da pobre mulher, que quase chorando conseguiu ainda contar da sua aflição e esperava ser segura e salva por essa divindade. E tudo o que pude ouvir alí, me levou a imaginar uma figura triste, que estendeu sua mão para a salvação, deu um passo esperançoso e caiu num abismo.

Resta a ela, em sua situação, refazer o pequeno castelo de cartas da fé. Até que um novo sopro de dor venha derrubar tudo o que foi tão zelosamente reerguido. É mesmo de cortar o coração. Até de quem não acredita nessas coisas.

Um comentário:

  1. Estou incluida naquela fatia dos que vivem em dúvida, mas nem tão silenciosa, pelo menos internamente, com mil perguntas sem respostas. O que me aquieta mais é que procuro sentir este Deus imponderável, isto é, alimentando o meu lado bom e administrando as minhas sombras, como uma agnóstica convicta. Chego até a invejar as pessoas que têm fé inabalável, não questionam nada, aceitam qualquer kit de dogmas e até caem no conto do milagre, como esta mulher do seu relato, porque depois vai dar a si mesma uma explicação "divina" e se conformar com o "foi Deus quem quis, eu devo merecer". talvez, ao contrário do que vce pensa, não sofrerá tanto.
    Também gosto de entrar em igrejas, silenciosas e afeitas a uma meditação e apelos instintivos ao divino, a quem chamo "meu misterioso". Penso que o homem desde o início dos tempos, como não tinha explicação para tudo que acontecia à sua volta e para a morte, o fim de tudo, o desaparecimento total, ele atribuía a um deus a culpa de tudo, fosse para o seu bem ou para o seu mal. É mais fácil, não? E continua assim e continuará para sempre. Não consigo é entrar num templo evangélico e assistir todo aquele fanatismo e toda aquela gritaria. Prefiro vivenciar outras experiências religiosas mais
    serenas como as de matriz oriental.
    Vce. deve conhecer a Brahma Kumaris. Vou sempre às meditações realizadas na sede daqui de Salvador.

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