segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

R34 A menininha

Dois caminhos, uma alma só...
Olho para a velha fábrica antes de começar a caminhar, sinto o sol queimando na pele e vou em frente. Logo sinto as botas quentes no asfalto mais quente ainda. Os carros passam e todo mundo olha. Parece que não mas faz bem. Foi-se o tempo em que olhava a fábrica lá longe, um ponto de referência e pensava em quantas vezes teria que parar para me refazer antes de retomar a caminhada. Só no meio do caminho é que me lembro de tomar água. Estou melhorando. A paisagem é linda e paro algumas vezes para olhar, pensar, relembrar coisas. É, vale a pena. Mas alguns pensamentos machucam.
-
Lembro novamente do túnel de luz. Existem muitos depoimentos de pessoas que foram ressuscitadas em hospitais, que estiveram clinicamente mortas com parada cardíaca e todos contaram sobre o túnel de luz. Disseram que no momento em que perderam a visão das coisas e de onde estavam, sentiram um relaxamento e foram envolvidas por uma sensação de paz que nunca tinham tido e todas as dores e medos passaram. E aí começaram a ver o túnel de luz e se sentiram a um passo do Paraíso. Depois acordaram na maca da ambulância ou do pronto-socorro, mas essa experiência deixou essa lembrança que existe em todos os que passaram por isso. De novo, lembro da minha mãe morrendo e penso se ela sentiu essa paz. Fico de olhos úmidos e espero, desejo que sim. Continuo caminhando, o sol quente, o asfalto queimando e procuro me esquecer disso. Procuro dentro da minha alma uma visão como a que essas pessoas viram, que seja mais próxima do Paraíso, mas não consigo. Mas o cansaço já está bom, o corpo melhora, se fortalece a cada caminhada, ao menos isso já me faz bem e o passo puxado me distrai, me faz esquecer essas dores. Dentro de mim procuro imaginar um caminho lindo, uma paisagem suave para poder ter paz, sentir menos dor, mas já me conformei. Vou viver assim, lembrando de tudo o que aconteceu, ainda sentindo essa dor ou talvez morrer por causa disso. Procuro de novo rever na mente esse caminho, tão bonito quanto esse em que estou de verdade agora. Uma só alma, dois caminhos. E uma lembrança que não cessa.
Pior ainda, tenho meditado sobre certas coisas e sinto como se minha alma emergisse de uma neblina, com uma forma que eu não gostaria de ver, mas sei que existe. Inútil tentar dizer que não. Percebo que o ser humano vive com dois caminhos em sua alma, mesmo que não saiba. De um lado podemos ser angelicais e criar mundos de sonhos lindos. Por outro podemos dar vazão a uma brutalidade inacreditável e criar pesadelos que todos vão querer esquecer. Anjo e demônio ao mesmo tempo. Olho para a floresta com flores crescendo perto das árvores e procuro me distrair disso. Mas é impossível.
-
Chego num ponto em que agora olho a fábrica de longe, mas dessa vez do outro lado do caminho. Nem parece que fiz todo esse trajeto perdido em pensamentos assim. Mais alguns quilômetros e passo na frente do hospital onde minha mãe morreu, onde a vi pela última vez, onde lhe fiz carinhos, animei-a dizendo que logo voltaria. Regulamentos do hospital. Você tem hora para sair e para voltar. E foi por isso que não pude estar com ela quando ela morreu. A dor volta.
-
Quando chego na praça, ainda podendo ver o hospital e de olhos úmidos, vejo uma das coisas mais lindas que poderiam existir no caminho. Uma menininha alegre com seu cachorrinho pequeno. Não pode haver imagem que me traga maior paz e tranquilidade do que essa. Ao passar perto dos dois, o cachorrinho avança para mim querendo brincar. A menininha sorri e diz que ele não morde. Eu sorrio também e sigo em frente. A dor passa.
Volto a pensar na minha mãe, em sua morte solitária e dessa vez a dor vem com um sentimento de esperança, com a lembrança das pessoas que quase morreram contando do túnel de luz. Eu espero que minha mãe não tenha visto esse túnel de luz.
-
Olho para a meninina brincando com o cachorrinho mais uma vez e desejo com todas as forças que no momento final, ao perder a consciência deste mundo, minha mãe tenha sentido uma paz, uma tranquilidade vinda do Paraíso, uma coisa que só sentiremos nesse momento.
-
Desejo com todas as forças do coração que ela tenha visto uma menininha assim, alegre feliz, brincando com seu cachorrinho e que os dois tenham se aproximado dela, que a menininha tenha segurado sua mão e a tenha levado pelo caminho mais lindo que ela poderia ver.
A dor quase desaparece. Olho para a menininha brincando com o cachorrinho mais uma vez, olho para o sol poente e sei que pelo menos essa imagem do Paraíso vai existir comigo para sempre. Gostaria de ter duas almas, como esses dois caminhos que existem dentro de mim.
-
Pelo menos uma delas poderia esquecer disso, descansar dessa dor. Retomo o caminho.

Nenhum comentário:

Postar um comentário