quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

C02 Valente

Filme recomendado...
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Muitas vezes nos vemos senão obrigados, pelo menos próximos da linha limite entre aguardar uma justiça que nunca chega ou então partir para o revide puro e simples contra um agressor que nos fez um grande mal e nisso acabar terminando com a vida dele. Em certos casos é correto. É o que é mostrado por Jodie Foster no papel da pacata radialista Erica Bain no filme "Valente" (Brave One, 2007).
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Interpretando uma cidadã comum que sofre uma grande violência, esse filme nos traz uma nova contemplação desse tema. Ela não só parte para o revide dessa violência por ela sofrida como também decide acertar as contas com muitos dos bandidos hoje tão comuns nas grandes cidades e que se aproveitam em grande parte de uma sociedade com leis lenientes no combate ao crime.
De forma surpreendente apesar de suas investigações quase sempre cruzarem com a radialista, o detetive Sam Mercer interpretado por Terrence Howard, deixa entrever em uma de suas entrevistas para ela que o que mais lhe doia em certos casos que tinha que investigar era justamente o fato de os criminosos quase sempre contarem exatamente com a lei para conseguirem caminhar entre o crime e a vida comum.
"Valente" é a refilmagem muito bem feita e com novas cores de um clássico de 1974 com Charles Bronson no papel de Paul Kersey, também um pacato cidadão nova-iorquino que perde a mulher violentada e morta em um assalto. Ainda vivenciando as dores do acontecido, ganha um revólver de presente de um amigo e ao reagir a um assalto descobre a letalidade que pode existir numa pessoa assim e acerta as contas com muitos bandidos.
Em comum com o filme atual existe a admiração dos cidadãos que veem que um vigilante está agindo na sua cidade e também no caso do primeiro filme, o sentimento de compreensão mostrado pelo policial que investiga o que acontece, no fundo senão admirando, ao menos entendendo os atos do justiceiro.
Um filme que é uma grata surpresa pelo tema que explora e que deve ser assistido por todos que se interessam pelo que vivemos hoje em dia, numa sociedade de metrópoles caóticas e onde a justiça ou polícia pouca ou quase nenhuma proteção oferecem aos cidadãos.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

D15 Calor de 35 graus

É o que diz o termômetro...
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Olho para a janela e o sol, sim esse mesmo que está fazendo mamonas estalarem parece bem convidativo. No horizonte nuvens de chuva. Tudo indica que além de sol também pegarei uma bela chuva na caminhada. Vamos que vamos. O meu amigo cachorro fica desanimado ao ver que não vai sair. Se ele soubesse o bem que lhe faço daria pulos de alegria, mas ele se reconforta com um afago creio que meio lembrado da última vez em que o levei sob esse sol atendendo a seu olhar tristonho e no meio do caminho o dito cujo quase desmaiou.
Ajeito a garrafa de água dentro da mochila e olho no termômetro, sim, 35 graus mesmo. Arrumo o tocador de MP3 no bolso, ponho a mochila e o chapéu e saio. Como eu pensava. Ninguém na rua. Também com esse calor não é de admirar. Olho para a fábrica bem longe e sinto uma sensação de euforia. Muito à frente da fábrica vejo a descida em que estarei caminhando dentro de duas horas. Sem problemas, ligo o som e vou ouvindo enquanto subo a rua. É gratificante me sentir assim mesmo vendo toda a distância que terei que percorrer. Significa que estou melhorando. Ao alcançar a saída para a rodovia, os primeiros carros passam com passageiros e motoristas olhando. Cruzes, o sujeito está caminhando com esse sol? Sim, estou, ora essa, nunca viu? Na praia ninguém reclama do sol. Que coisa.
No meio do caminho, ainda próximo das casas vou me aproximando de uma mulher bem gorda. Que coisa elogiável, tudo indica que ela duramente se esforça para reduzir seu peso. Penso que é um verdadeiro exemplo nos dias de hoje. Caminhando assim, creio que dentro de um ano terá conseguido progressos notáveis. Ao passar por ela vejo que está comendo um belo pedaço de pudim e não é roupa de caminhada. Então deve estar indo bem tranquila para casa voltando talvez da padaria onde comprou um belo e delicioso pudim de leite. Ainda há pelo menos esperanças de que ela venha a entrar para o livro de recordes. De peso, é claro.
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Chego no trevo e admiro minha floresta. Quando faço a curva vejo o ar quente se levantando do asfalto, deixando a pista ao longe parecendo molhada. De novo passam todos de olhos postos em mim. Tenho até medo que algum motorista perca a direção de tanto me olhar. Mas nunca viram um sujeito caminhando? Sim, está um sol de rachar que sinto nas botas, mas e daí?
Aqui na subida pelo menos uns 40 graus, sem dúvida. Levei uma hora até esse trecho em que levava meia hora a mais para fazer, só agora vou beber água, bem onde antes me perguntava se as garrafas iam durar até o fim da caminhada. É devo estar melhorando mesmo.
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Pego a subida até a fábrica com tudo. Dez minutos estrada acima, com o tempo diminuindo, a disposição aumentando. Caminhões descem a estrada com uma velocidade de dar medo e o vento que fazem me obriga a segurar o chapéu. Os carros passam com todos de olhos grudados em mim ou todos hoje deram de olhar para o lado direito do passageiro e do motorista sabe-se lá porque. Sim, está um sol que deixa o asfalto mole, mas que coisa, no trio elétrico ninguém reclama.
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Chego na frente da fábrica e olho para o ponto de onde saí há uma hora atrás. Me sinto bem e posso beber mais água e continuo caminhando no ponto onde antes meus pés latejavam e minhas costas doíam tanto que eu tinha que descansar um pouco e a idéia de pegar o ônibus virava uma tentação. Sim, estou melhorando mesmo. Delícia. Com a música dos Rolling Stones também qualquer um caminha assim.
Maravilha, chego no ponto em que olhei há coisa de uma hora e meia atrás lá do outro lado do caminho e vejo que o tempo se mantém. A chuva mudou de rumo. Nada mau, assim a roupa no varal fica seca.
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Continuo ouvindo a música e vou descendo. É, agora a temperatura baixou mas no asfalto é certo que peguei uns 37 ou 40 graus. Ao que tudo indica, se o relógio não estiver sofrendo de insolação, estou melhorando o tempo. Preciso começar a me lembrar de trazer o termômetro.
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O sol se vai e eu também, mas foi divertido.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

R34 A menininha

Dois caminhos, uma alma só...
Olho para a velha fábrica antes de começar a caminhar, sinto o sol queimando na pele e vou em frente. Logo sinto as botas quentes no asfalto mais quente ainda. Os carros passam e todo mundo olha. Parece que não mas faz bem. Foi-se o tempo em que olhava a fábrica lá longe, um ponto de referência e pensava em quantas vezes teria que parar para me refazer antes de retomar a caminhada. Só no meio do caminho é que me lembro de tomar água. Estou melhorando. A paisagem é linda e paro algumas vezes para olhar, pensar, relembrar coisas. É, vale a pena. Mas alguns pensamentos machucam.
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Lembro novamente do túnel de luz. Existem muitos depoimentos de pessoas que foram ressuscitadas em hospitais, que estiveram clinicamente mortas com parada cardíaca e todos contaram sobre o túnel de luz. Disseram que no momento em que perderam a visão das coisas e de onde estavam, sentiram um relaxamento e foram envolvidas por uma sensação de paz que nunca tinham tido e todas as dores e medos passaram. E aí começaram a ver o túnel de luz e se sentiram a um passo do Paraíso. Depois acordaram na maca da ambulância ou do pronto-socorro, mas essa experiência deixou essa lembrança que existe em todos os que passaram por isso. De novo, lembro da minha mãe morrendo e penso se ela sentiu essa paz. Fico de olhos úmidos e espero, desejo que sim. Continuo caminhando, o sol quente, o asfalto queimando e procuro me esquecer disso. Procuro dentro da minha alma uma visão como a que essas pessoas viram, que seja mais próxima do Paraíso, mas não consigo. Mas o cansaço já está bom, o corpo melhora, se fortalece a cada caminhada, ao menos isso já me faz bem e o passo puxado me distrai, me faz esquecer essas dores. Dentro de mim procuro imaginar um caminho lindo, uma paisagem suave para poder ter paz, sentir menos dor, mas já me conformei. Vou viver assim, lembrando de tudo o que aconteceu, ainda sentindo essa dor ou talvez morrer por causa disso. Procuro de novo rever na mente esse caminho, tão bonito quanto esse em que estou de verdade agora. Uma só alma, dois caminhos. E uma lembrança que não cessa.
Pior ainda, tenho meditado sobre certas coisas e sinto como se minha alma emergisse de uma neblina, com uma forma que eu não gostaria de ver, mas sei que existe. Inútil tentar dizer que não. Percebo que o ser humano vive com dois caminhos em sua alma, mesmo que não saiba. De um lado podemos ser angelicais e criar mundos de sonhos lindos. Por outro podemos dar vazão a uma brutalidade inacreditável e criar pesadelos que todos vão querer esquecer. Anjo e demônio ao mesmo tempo. Olho para a floresta com flores crescendo perto das árvores e procuro me distrair disso. Mas é impossível.
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Chego num ponto em que agora olho a fábrica de longe, mas dessa vez do outro lado do caminho. Nem parece que fiz todo esse trajeto perdido em pensamentos assim. Mais alguns quilômetros e passo na frente do hospital onde minha mãe morreu, onde a vi pela última vez, onde lhe fiz carinhos, animei-a dizendo que logo voltaria. Regulamentos do hospital. Você tem hora para sair e para voltar. E foi por isso que não pude estar com ela quando ela morreu. A dor volta.
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Quando chego na praça, ainda podendo ver o hospital e de olhos úmidos, vejo uma das coisas mais lindas que poderiam existir no caminho. Uma menininha alegre com seu cachorrinho pequeno. Não pode haver imagem que me traga maior paz e tranquilidade do que essa. Ao passar perto dos dois, o cachorrinho avança para mim querendo brincar. A menininha sorri e diz que ele não morde. Eu sorrio também e sigo em frente. A dor passa.
Volto a pensar na minha mãe, em sua morte solitária e dessa vez a dor vem com um sentimento de esperança, com a lembrança das pessoas que quase morreram contando do túnel de luz. Eu espero que minha mãe não tenha visto esse túnel de luz.
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Olho para a meninina brincando com o cachorrinho mais uma vez e desejo com todas as forças que no momento final, ao perder a consciência deste mundo, minha mãe tenha sentido uma paz, uma tranquilidade vinda do Paraíso, uma coisa que só sentiremos nesse momento.
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Desejo com todas as forças do coração que ela tenha visto uma menininha assim, alegre feliz, brincando com seu cachorrinho e que os dois tenham se aproximado dela, que a menininha tenha segurado sua mão e a tenha levado pelo caminho mais lindo que ela poderia ver.
A dor quase desaparece. Olho para a menininha brincando com o cachorrinho mais uma vez, olho para o sol poente e sei que pelo menos essa imagem do Paraíso vai existir comigo para sempre. Gostaria de ter duas almas, como esses dois caminhos que existem dentro de mim.
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Pelo menos uma delas poderia esquecer disso, descansar dessa dor. Retomo o caminho.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

R33 A ferrovia

Um caminho longo demais...
Ontem, depois de começar a caminhar novamente em percursos longos pude me sentir feliz. Experimentei sol e chuva, mas acima de tudo a certeza de estar no caminho que iniciei há algum tempo, do sol e do aço. Efeitos começam a aparecer sobre o corpo aos poucos exatamente como deixou registrado em seu memorável livro de reflexões, Yukio Mishima. Esse admirável escritor japonês em "Sol e Aço" uma de suas melhores obras fala de coisas do corpo e do espírito.
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E descreve de forma candente como o aço, parecendo obedecer a uma espécie de lei de equilíbrio natural, passa aos poucos para o corpo a força que está contida nele e modela o corpo que dele usa. Descobri mais por esses dias. Não só modela o corpo, como modela também o espírito. Tivesse eu levado as palavras desse pequeno livro para a prática há anos atrás e com certeza muitas coisas da vida não teriam me abatido como me abateram.
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De sorte que há alguns meses, passando em frente da floresta que sempre vejo, iniciei passo a passo o caminho para vivenciar tudo isso. Nem bem posso dizer que tenha vivência nesse caminho e já senti que a emoção que por vezes toma conta de mim com um corpo que se refaz a cada dia é algo a desejar e ao mesmo tempo a temer, ou acautelar-se com as coisas que ela nos leva a fazer e quando vemos, está feito. Se o começo é assim, tímido e ao mesmo tempo turbulento, penso no que será no momento em que o corpo atingir a plena vitalidade de trabalho e luta por causa disso. O próprio Mishima pagou com a vida por isso.
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Paro a caminhada que iniciei horas antes. Me lembro de na saída ter visto bem longe a quilômetros de distância a fábrica que fica no caminho, a alegria de recomeçar as caminhadas, saber que antes de me assustar, a distância me convida. E vou em frente. Por dentro uma sensação quase de êxtase.
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Em certo trecho da caminhada, percebo que pouco ligo para o tempo, mal sinto o cansaço. A cada caminhada, me sinto melhor. Continuo e alterno sol e chuva pelo caminho. Olho agora a fábrica, quilômetros atrás. Paro aqui perto da ferrovia que conheço há anos, vejo seus trilhos desaparecendo no horizonte e o sol brilhando sobre o aço dos trilhos e me parece que faço um caminho assim. Só não sei onde vai terminar, mas é contagiante.
E pensar que um pequeno livro, de memórias e reflexões desperta tantos sentimentos. Guardei-o por anos, por vezes relendo algumas das impressões deixadas pelo escritor.
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Se esse tão pouco já dá essa sensação, espero que possa viver muito mais disso ainda. Os trilhos, sol e aço, brilhando e se perdendo no horizonte, agora, ao invés de trazerem a sensação de dúvida pelo fim do caminho, trazem a esperança de que o caminho seja interminável.